segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Meu nome é Zé (Albir José Inácio da Silva)

Ou rosê como dizem meus vizinhos de fala enrolada. Não vou contar minha história porque ela não tem nada de interessante. Quero falar do meu primo Samuel, esse sim uma vida gloriosa.


Temos quase a mesma idade, mas ele sempre mereceu maior respeito. Todos nós lhe pedimos a bênção. Os mais pobres insistimos nesse parentesco na esperança de alguma intimidade. Intimidade que ele nunca quis e parentesco que ele nunca reconheceu, porque de nada lhe serviria.

Samuel sabia que não era amado e se dizia respeitado. Os críticos corrigiam: era temido. Parecia respeito, reconheciam que era poderoso, rico e sabido, mas o que sentiam era medo. Ele tinha muitos jagunços e muitas armas. Seu dinheiro se multiplicava porque era implacável na administração de suas posses com sangue conquistadas dos bugres preguiçosos. Preguiça que encontrava agora a sua volta.

Acostumou-se às reclamações. Não tinha culpa da miséria de ninguém, dizia, e miséria sempre foi fruto da preguiça. Não podia era permitir que lhe invadissem as terras. Direito de entrar e sair, só na casa da sogra. Não queria por lá esses molambos famélicos, barulhentos, batucantes e chorões em que se transformaram seus vizinhos e parentes.

Reprimia com vigor as ameaças externas, mesmo distantes, garantindo tranqüilidade para o desenvolvimento dos seus. Verdade que às vezes avançava por terras alheias, mas tinha sempre boas explicações. A melhor delas: punição.

E também porque pobres brigam muito e algumas vezes tinha que intervir com energia para impedir que se matassem. Já ouvi que isso não foi invenção do Samuel: antigamente os romanos também pacificavam os bárbaros pela força.

Ameaças não faltavam e às vezes se concretizavam com tiros e explosões até no seu quintal. Por isso era tão difícil entrar nas terras de Samuel. Poucos eram convidados, e mesmo os que queriam comprar tinham de mostrar o dinheiro e retornar logo às suas casas. Sua riqueza era dos seus, dizia. Eu mesmo já perdi a tiros dois sobrinhos que tentaram entrar.

Ensinar austeridade e conter o desperdício em terras alheias, em vez de cuidar da própria felicidade, foram mal interpretados. Assim se paga a generosidade. Mudanças abalaram a tranquilidade de Samuel. Seus produtos venderam menos. Os pobres trocaram qualidade por coisas mais baratas.

Em casa seus filhos perderam empregos, apesar de muito bem preparados. O crédito e as hipotecas, que sempre alavancaram a vida, passaram a ser ameaça. Até sua gente começou a bradar contra as dificuldades.

Voltas que o mundo dá. Alguns chegaram a comparar Samuel com outros endividados, o que é um absurdo. Discutiam sua capacidade de pagamento como se ele fosse um deles. Parece que todos ficaram felizes porque o seu nome figurava pela primeira vez na lista do SPC.

Na Associação ouvimos pronunciamentos inflamados sobre solidariedade, honestidade, humanidade e perigo de afundar juntos sem cooperação. E falaram olhando pra ele. Não há mais respeito.

Acho que ele não acredita em nada disso porque sempre cuidou da própria vida e nunca precisou de ninguém. Pelo contrário, quantas vezes teve de emprestar dinheiro para essa gente?

Mas a verdade é que o discurso foi muito aplaudido. Samuel só respondeu que não ia faltar com seus compromissos, que não se preocupassem. Do lado de fora pareceu mais sorridente. Chamou algumas pessoas pra conversar, elogiou alguns produtos e prometeu baixar o preço de outros. Apertou mãos que nunca tinha tocado, e convidou pras festas no parque de suas crianças.

Anunciou também que ia facilitar visitas a suas terras. O pessoal aqui em casa ficou muito animado. Sempre ouvimos que é um lugar de sonho, que beleza e riqueza estão por toda parte, e que tem cada novidade de assustar um cristão.

Até eu, que sou só o Zé, confesso que fico cheio de vontade de conhecer aquelas belezuras. Tenho apenas um medo. Sei que assim que o velho Sam melhorar de vida outra vez, perde de novo a paciência com os Zés daqui de baixo.

Mas que eu tenho vontade, ah isso eu tenho.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Desabafo de um bom marido. (Luis Fernando Veríssimo)

Minha esposa e eu sempre andamos de mãos dadas. Se eu soltar, ela vai às compras.
Ela tem um liquidificador elétrico, uma torradeira elétrica, e uma máquina de fazer pão elétrica.
Então ela disse: ‘Nós temos muitos aparelhos, mas não temos lugar pra sentar’.
Daí, comprei pra ela uma cadeira elétrica.
Eu me casei com a ‘Sra. Certa’. Só não sabia que o primeiro nome dela era ‘Sempre’.
Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la.
Mas tenho que admitir, a nossa última briga foi culpa minha.
Ela perguntou: ‘O que tem na TV?’ E eu disse ‘Poeira’.
No começo Deus criou o mundo e descansou.
Então, Ele criou o homem e descansou.
Depois, criou a mulher. Desde então, nem Deus, nem o homem, nem o Mundo tiveram mais descanso.
Quando o nosso cortador de grama quebrou, minha mulher ficava sempre me dando a entender que eu deveria consertá-lo. Mas eu sempre acabava tendo outra coisa para cuidar antes, o caminhão, o carro, a pesca, sempre alguma coisa mais importante para mim.
Finalmente ela pensou num jeito esperto de me convencer.
Certo dia, ao chegar em casa, encontrei-a sentada na grama alta, ocupada em podá-la com uma tesourinha de costura. Eu olhei em silêncio por um tempo, me emocionei bastante e depois entrei em casa. Em alguns minutos eu voltei com uma escova de dentes e lhe entreguei.
‘- Quando você terminar de cortar a grama,’ eu disse, ‘você pode também varrer a calçada.’
Depois disso não me lembro de mais nada. Os médicos dizem que eu voltarei a andar, mas mancarei pelo resto da vida’.
‘O casamento é uma relação entre duas pessoas na qual uma está sempre certa e a outra é o marido…’

domingo, 3 de julho de 2011

Mãe (Rubem Braga)

O menino e seu amiguinho brincavam nas primeiras espumas; o pai fumava um cigarro na praia, batendo papo com um amigo. E o mundo era inocente, na manhã de sol.

Foi então que chegou a Mãe (esta crônica é modesta contribuição ao Dia das Mães), muito elegante em seu short, e mais ainda em seu maiô. Trouxe óculos escuros, uma esteirinha para se esticar, óleo para a pele, revista para ler, pente para se pentear — e trouxe seu coração de Mãe que imediatamente se pôs aflito achando que o menino estava muito longe e o mar estava muito forte.

Depois de fingir três vezes não ouvir seu nome gritado pelo pai, o garoto saiu do mar resmungando, mas logo voltou a se interessar pela alegria da vida, batendo bola com o amigo. Então a Mãe começou a folhear a revista mundana — "que vestido horroroso o da Marieta neste coquetel" — "que presente de casamento vamos dar à Lúcia? tem de ser uma coisa boa" — e outros pequenos assuntos sociais foram aflorados numa conversa preguiçosa. Mas de repente:

— Cadê Joãozinho?

O outro menino, interpelado, informou que Joãozinho tinha ido em casa apanhar uma bola maior.

— Meu Deus, esse menino atravessando a rua sozinho! Vai lá, João, para atravessar com ele, pelo menos na volta!

O pai (fica em minúscula; o Dia é da Mãe) achou que não era preciso:

— O menino tem OITO anos, Maria!

— OITO anos, não, oito anos, uma criança. Se todo dia morre gente grande atropelada, que dirá um menino distraído como esse!

E erguendo-se olhava os carros que passavam, todos guiados por assassinos (em potencial) de seu filhinho.

— Bem, eu vou lá só para você não ficar assustada.

Talvez a sombra do medo tivesse ganho também o coração do pai; mas quando ele se levantou e calçou a alpercata para atravessar os vinte metros de areia fofa e escaldante que o separavam da calçada, o garoto apareceu correndo alegremente com uma bola vermelha na mão, e a paz voltou a reinar sobre a face da praia.

Agora o amigo do casal estava contando pequenos escândalos de uma festa a que fora na véspera, e o casal ouvia, muito interessado — "mas a Niquinha com o coronel? não é possível!" — quando a Mãe se ergueu de repente:

— E o Joãozinho?

Os três olharam em todas as direções, sem resultado. O marido, muito calmo — "deve estar por aí", a Mãe gradativamente nervosa — "mas por aí, onde?" — o amigo otimista, mas levemente apreensivo. Havia cinco ou seis meninos dentro da água, nenhum era o Joãozinho. Na areia havia outros. Um deles, de costas, cavava um buraco com as mãos, longe.

— Joãozinho!

O pai levantou-se, foi lá, não era. Mas conseguiu encontrar o amigo do filho e perguntou por ele.

— Não sei, eu estava catando conchas, ele estava catando comigo, depois ele sumiu.

A Mãe, que viera correndo, interpelou novamente o amigo do filho. "Mas sumiu como? para onde? entrou na água? não sabe? mas que menino pateta!" O garoto, com cara de bobo, e assustado com o interrogatório, se afastava, mas a Mãe foi segurá-lo pelo braço: "Mas diga, menino, ele entrou no mar? como é que você não viu, você não estava com ele? hein? ele entrou no mar?".

— Acho que entrou... ou então foi-se embora.

De pé, lábios trêmulos, a Mãe olhava para um lado e outro, apertando bem os olhos míopes para examinar todas as crianças em volta. Todos os meninos de oito anos se parecem na praia, com seus corpinhos queimados e suas cabecinhas castanhas. E como ela queria que cada um fosse seu filho, durante um segundo cada um daqueles meninos era o seu filho, exatamente ele, enfim — mas um gesto, um pequeno movimento de cabeça, e deixava de ser. Correu para um lado e outro. De súbito ficou parada olhando o mar, olhando com tanto ódio e medo (lembrava-se muito bem da história acontecida dois a três anos antes, um menino estava na praia com os pais, eles se distraíram um instante, o menino estava brincando no rasinho, o mar o levou, o corpinho só apareceu cinco dias depois, aqui nesta pr aia mesmo!) — deu um grito para as ondas e espumas — "Joãozinho!".

Banhistas distraídos foram interrogados — se viram algum menino entrando no mar — o pai e o amigo partiram para um lado e outro da praia, a Mãe ficou ali, trêmula, nada mais existia para ela, sua casa e família, o marido, os bailes, os Nunes, tudo era ridículo e odioso, toda essa gente estúpida na praia que não sabia de seu filho, todos eram culpados — "Joãozinho !" — ela mesma não tinha mais nome nem era mulher, era um bicho ferido, trêmulo, mas terrível, traído no mais essencial de seu ser, cheia de pânico e de ódio, capaz de tudo — "Joãozinho !" — ele apareceu bem perto, trazendo na mão um sorvete que fora comprar. Quase jogou longe o sorvete do menino com um tapa, mandou que ele ficasse sentado ali, se saísse um passo iria ver, ia apanhar muito, menino desgraçado!

O pai e o amigo voltaram a sentar, o menino riscava a areia com o dedo grande do pé, e quando sentiu que a tempestade estava passando fez o comentário em voz baixa, a cabeça curva, mas os olhos erguidos na direção dos pais:

— Mãe é chaaata...

quarta-feira, 29 de junho de 2011

O Homem Nu (Fernando Sabino)

Ao acordar, disse para a mulher:

— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.

— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.

— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.

Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.

Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:

— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.

Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.

Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!

Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:

— Maria, por favor! Sou eu!

Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.

Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.

— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado.

E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!

— Isso é que não — repetiu, furioso.

Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.

— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.

Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:

— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu...

A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:

— Valha-me Deus! O padeiro está nu!

E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:

— Tem um homem pelado aqui na porta!

Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:

— É um tarado!

— Olha, que horror!

— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!

Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.

— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.

Não era: era o cobrador da televisão.

terça-feira, 28 de junho de 2011

O Apito (Luis Fernando Verissimo)

Tudo o que o Mafra dizia, o Dubin duvidava. Eram inseparáveis, mas viviam brigando. Porque o Mafra contava histórias fantásticas e o Dubin sempre fazia aquela cara de conta outra.

— Uma vez...

— Lá vem história.

— Eu nem comecei e você já está duvidando?

— Duvidando, não. Não acredito mesmo.

— Mas eu nem contei ainda!

— Então conta.

— Uma vez eu fui a um baile só de pernetas e...

— Eu não disse? Eu não disse?

O Mafra às vezes fazia questão de provar as suas histórias para o Dubin.

— Dubin, eu sou ou não sou pai-de-santo honorário?

O Dubin relutava, mas confirmava.

— É.

Mas em seguida arrematava:

— Também, aquele terreiro está aceitando até turista argentino...

Então veio o caso do apito. Um dia, numa roda, assim no mais , o Mafra revelou:

— Tenho um apito de chamar mulher.

— O quê?

— Um apito de chamar mulher.

Ninguém acreditou. O Dubin chegou a bater com a cabeça na mesa, gemendo:

— Ai meu Deus! Ai meu Deus!

— Não quer acreditar, não acredita. Mas tenho.

— Então mostra.

— Não está aqui. E aqui não precisa apito. É só dizer "vem cá".

O Dubin gesticulava para o céu, apelando por justiça.

— Um apito de chamar mulher! Só faltava essa!

Mas aconteceu o seguinte: Mafra e Dubin foram juntos numa viagem (Mafra queria provar ao Dubin que tinha mesmo terras na Amazônia, uma ilha que mudava de lugar conforme as cheias) e o avião caiu em plena selva. Ninguém se pisou, todos sobreviveram e depois de uma semana a frutas e água foram salvos pela FAB. Na volta, cercados pelos amigos, Mafra e Dubin contaram sua aventura. E Mafra, triunfante, pediu para Dubin:

— Agora conta do meu apito.

— Conta você — disse Dubin, contrafeito.

— O apito existia ou não existia?

— Existia.

— Conta, conta — pediram os outros.

— Foi no quarto ou quinto dia. Já sabíamos que ninguém morreria. A FAB já tinha nos localizado. O salvamento era só uma questão de tempo. Então, naquela descontração geral, tirei o meu apito do bolso.

— O tal de chamar mulher?

— Exato. Estou mentindo, Dubinzinho?

— Não — murmurou Dubinzinho.

— Soprei o apito e pimba.

— Apareceram mulheres?

— Coisa de dez minutos. Três mulheres.

Todos se viraram para o Dubin incrédulos.

— É verdade?

— É — concedeu Dubin.

Fez-se um silêncio de puro espanto. No fim do qual Dubin falou outra vez:

— Mas também, era cada bucho!

segunda-feira, 27 de junho de 2011

O prazer de matar mosquitos (Marcelo Coelho)

Uma amiga que mora no Rio conta que a nova mania de consumo na cidade é uma raquete elétrica, utilizada para exterminar mosquitos. Na internet, pode ser comprada a preço baixo.
Depoimentos de consumidores não apenas comprovam a sua eficácia como também atestam o prazer que pode existir na eletrocução de pernilongos. O inseto é "fulminado" de um modo que nenhuma propaganda de aerossol poderia prometer em sã consciência.
E, se deixarmos a raquete em contato com o inimigo, ele "explode", emitindo um pequeno ruído capaz de satisfazer nossos instintos mais secretos de vingança.
Fico pensando se essa explosão não se deve à circunstância de o pernilongo estar já empanturrado do sangue de seu assassino. Seja como for, uma coisa é certa.
Alguém está ganhando dinheiro com o inusitado invento. É o que costuma acontecer nas crises.
Quem não se lembra daquelas lâmpadas econômicas que floresceram durante o apagão? Entrei feliz em casa, certo dia, com uma grande sacola de supermercado abarrotada do produto. Sentia-me colaborando com o esforço cívico imposto pelas autoridades e orgulhoso, além disso, de ser um consumidor inteligente.
Minha sensação de inteligência durou menos que o clique de um interruptor, porque eu não tinha reparado, na gôndola de ofertas, que todas aquelas lâmpadas eram para 220 volts.
Tivesse eu uma raquete elétrica naquele tempo, teria sem dúvida destruído, bulbo a bulbo, aquela coleção de inutilidades domésticas. "É eletricidade o que vocês querem?
Então, tomem isto!"
Hoje em dia, poucas daquelas lâmpadas sobrevivem, com sua luz zumbi, numa ou noutra sacada, na frente de alguma loja falida, em alguma sala de espera de hospital, onde, se for no Rio, gente com dengue faz fila, ardendo de febre e impotência.
Talvez por isso mesmo as raquetes elétricas atraiam tanto desejo de consumo. Na impotência, consumir é sempre um consolo.
Ainda mais quando o produto libera impulsos de agressividade. Talvez seja, infelizmente, uma verdade sobre a natureza humana o que observo a seguir.
Por mais que se diga que "prevenir é melhor do que remediar", ninguém tira nenhuma compensação simbólica, subjetiva, do fato de prevenir o que quer que seja. Qual a graça de esvaziar pneus velhos cheios de água, de tirar bacias de plástico do relento? E como dormir sossegado quando não se sabe se o vizinho, para nada dizer das autoridades, tomou alguma iniciativa para eliminar os ovos do mosquito?
De resto, o que é a contracepção, ou mesmo o aborto num início de gravidez, perto da eficácia, da visualidade épica e incontestável de um assassinato?
Na mesma linha de raciocínio, como acusar de homicidas os governantes? Fizeram pouquíssimo para impedir que a dengue vitimasse dezenas de crianças; mas, afinal, é disso mesmo que se trata. Não fizeram nada de mais.
Já a certeza concreta de ver o mosquito morto, longe de qualquer virtualidade preventiva, confere a cada cidadão um poder palpável. Ele faz a sua parte, ou melhor, faz justiça: todo pernilongo, embora possa não ser um Aedes aegypti, tem sua parcela de culpa.
Não é um daqueles jovens que são trucidados em supostos confrontos com a polícia, e que depois se revelam completos inocentes. E uma coisa é possuir um 38 dentro de casa, para corrigir possíveis omissões dos grupos de extermínio, e outra é dar voleios de raquete elétrica no remanso do lar, coisa bem mais divertida.
E sofisticada também. Costumo matar meus mosquitos à mão. Já me aconteceu a felicidade de encontrar um e outro pousado na página do livro que estava lendo: num gesto extremo e terminante de recusa à civilização, fechei o volume com raiva sobre a vítima. O pernilongo ficou para sempre ali, estampado como um asterisco histórico que atestasse, preto no branco, minha rara e microscópica contribuição ao bem-estar da humanidade.
O poder público que se recolha à sua insignificância, e não invente de proibir as raquetes elétricas.
São um símbolo do protagonismo civil e da livre iniciativa. São um adendo e um substituto ao perigoso esporte do frescobol em praias superlotadas. Mate-se o mosquito, o "meu" mosquito (de preferência com explosão), e que o resto do mundo sobreviva, como puder, no seu unânime zumbido de inseto.

sábado, 25 de junho de 2011

Pensando um pouco na morte (Paulo Coelho)

Creio que este texto será lido em aproximadamente três minutos. Pois bem: segundo as estatísticas, neste espaço de tempo irão morrer 300 pessoas, e outras 620 nascerão.
Talvez eu demore meia-hora para escrevê-la: estou concentrado no meu computador, com livros ao meu lado, idéias na cabeça, carros passando lá fora. Tudo parece absolutamente normal à minha volta; entretanto, durante estes trinta minutos, 3.000 pessoas morreram, e 6.200 acabam de ver, pela primeira vez, a luz do mundo.
Onde estarão estas milhares de famílias que apenas começaram a chorar a perda de alguém, ou rir com a chegada de um filho, neto, irmão?
Paro e reflito um pouco: talvez muitas destas mortes estejam chegando no final de uma longa e dolorosa enfermidade, e certas pessoas estão aliviadas com o Anjo que veio buscá-las. Além do mais, com toda certeza, centenas destas crianças que acabam de nascer serão abandonadas no próximo minuto, e passarão para a estatística de morte antes que eu termine este texto.
Que coisa. Uma simples estatística, que olhei por acaso – e de repente estou sentindo estas perdas e estes encontros, estes sorrisos e estas lágrimas. Quantos estão deixando esta vida sozinhos, em seus quartos, sem que ninguém se de conta do que está acontecendo? Quantos nascerão escondidos, e serão abandonados na porta de asilos ou conventos?
Reflito: já fui parte da estatística de nascimentos, e um dia serei incluído no numero de mortos. Que bom: eu tenho plena consciência de que vou morrer. Desde que fiz o caminho de Santiago, entendi que – embora a vida continue, e sejamos todos eternos – esta existência vai acabar um dia.
As pessoas pensam muito pouco na morte. Passam suas vidas preocupadas com verdadeiros absurdos, adiam coisas, deixam de lado momentos importantes. Não arriscam, porque acham que é perigoso. Reclamam muito, mas se acovardam na hora de tomar providências. Querem que tudo mude, mas elas mesmas se recusam a mudar.
Se pensassem um pouco mais na morte, não deixariam jamais de dar o telefonema que está faltando. Seriam um pouco mais loucas. Não iam ter medo do fim desta encarnação – porque não se pode temer algo que vai acontecer de qualquer jeito.
Os índios dizem: “ hoje é um dia tão bom quanto qualquer outro para deixar este mundo”. E um bruxo comentou certa vez: “que a morte esteja sempre sentada ao seu lado. Assim, quando você precisar fazer coisas importantes, ela lhe dará a força e a coragem necessárias”.
Espero que você, leitor, tenha chegado até aqui. Seria uma bobagem assustar-se com o título, porque todos nós, cedo ou tarde, vamos morrer. E só quem aceita isso está preparado para a vida.

O Pensador

O Pensador
Descobrindo um continente desconhecido... hehe
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